Fantasma das privatizações volta a assustar

Uma série de iniciativas do governo federal reacendeu, nas últimas semanas, os debates sobre a privatização no país. Um dos motes para a discussão foi a 11ª Rodada de Licitações de Blocos para Exploração e Produção de Petróleo e Gás Natural. Promovido entre 14 e 15 de maio no Rio de Janeiro, o leilão arrecadou R$ 2,8 bilhões – R$ 823 milhões a mais do que o antigo recorde, R$ 2,1 bilhões obtidos em 2009.

A Agência Nacional do Petróleo (ANP) comemorou o resultado do leilão, realizado após uma pausa de cinco anos. A diretora-geral do órgão, Magda Chambriard, afirmou à imprensa que a rodada foi um bom parâmetro para “mostrar o apetite” das empresas para o próximo leilão, previsto para outubro.

Movimentos sociais e sindicais, por outro lado, não ficaram nada satisfeitos com o novo leilão. Em 12 de maio, cerca de 600 integrantes de organizações populares promoveram ocupações no Ministério de Minas e Energia (MME) e na ANP para pressionar o cancelamento do leilão.

Um espectro dos anos de 1990

O petróleo é apenas uma das preocupações das entidades, que temem uma retomada das privatizações que marcaram a década de 1990 durante os mandatos de Fernando Henrique Cardoso. Isso porque outros setores importantes da infraestrutura, como portos e usinas de energia elétrica, podem seguir destino semelhante ao dos aeroportos, entregues à exploração de empresas privadas em 2012.

Para o coordenador-geral da Federação Única dos Petroleiros (FUP) João Antônio de Moraes, o governo comete um “equívoco” ao adotar a política de concessões. “É um equívoco do governo colocar à disposição de empresas privadas, principalmente multinacionais, setores estratégicos da economia, como a energia e o petróleo”, afirma. Dos 30 grupos vencedores do leilão do petróleo, 18 são estrangeiros.

Na avaliação do advogado e integrante da Consulta Popular, Ricardo Gebrim, apesar das diferenças jurídicas entre os regimes de concessão e privatização, as medidas do governo federal podem ser consideradas “privatizantes”. Ele entende que não há motivos para se optar, nesse momento, pelas concessões.

“Não há necessidade e não faz sentido o governo brasileiro abrir espaços para a iniciativa privada quando ele próprio pode gerir. Ele [Estado] tem experiência, capacidade tecnológica, quadros, recursos que permitem isso”, explica.

Portos e usinas

Na mesma semana que se realizava o 11ª leilão do petróleo, o governo conseguia aprovar, no Congresso Nacional, a Medida Provisória (MP) 595, que estabelece um novo marco regulatório para o setor portuário. O objetivo da chamada “MP dos Portos”, segundo o Planalto, é dar mais competitividade ao setor. A expectativa é de que a medida atraia investimentos de até R$ 50 bilhões ao setor.

A medida vem sofrendo críticas por dar mais abertura à iniciativa privada. Um dos pontos mais polêmicos se refere ao transporte de cargas pelos portos privados. De acordo com as regras atuais, os portos privados só estão autorizados a transportar as próprias cargas.

Com a MP, eles poderão realizar o transporte de cargas de outras empresas, entrando em competição direta com os públicos. Segundo opositores da medida, isso resultaria na falência gradativa dos portos públicos, que não conseguiriam enfrentar a concorrência.

O presidente da Federação Nacional dos Portuários (FNP), Eduardo Guterra, partilha das preocupações e afirma que a medida pode causar uma “concorrência desleal” entre os dois tipos de portos. Ele explica, porém, que negociações da categoria com o governo garantiram algumas vitórias, como proteção especial aos trabalhadores e a retirada do parágrafo que permitia a concessão dos portos públicos e de sua administração para empresas privadas.

“Todas as questões que nós colocamos como ponto de negociação com o governo foram contempladas”, comemora.

Usinas elétricas

Outro setor que vem ganhando atenção é o das usinas de energia. Até 2015, 12 hidrelétricas e 23 pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) terão seus contratos de concessão encerrados. De acordo com a lei 9.074/95, terminado o prazo de concessão, as usinas terão que ser novamente licitadas para novos interessados na exploração. Organizações populares reivindicam que a União tome medidas para mudar a legislação, podendo assim manter o controle sobre o setor elétrico.

O governo, no entanto, não dá sinais nesse sentido. Em abril o secretário-executivo do Ministério de Minas e Energia, Márcio Zimmermann, afirmou que o leilão da usina de Três Irmãos, em Andradina (SP), deverá ocorrer ainda no primeiro semestre. Antes controlada pela estatal Companhia de Energia de São Paulo (Cesp), a hidrelétrica de Três Irmãos teve seu contrato de concessão vencido em 2011.

A Cesp foi uma das três empresas que recusaram a oferta do governo para ter renovada a concessão de suas hidrelétricas, dentro do plano para baratear a tarifa de energia.

Contradições

Para o integrante da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) Joceli Andrioli, o governo perde a oportunidade de retomar o controle de bens estratégicos, preferindo manter a privatização do setor e os lucros das empresas privadas.

“É uma tremenda contradição, é um erro político extraordinário”, afirma Andrioli. “Está se jogando a soberania nacional no lixo”, completa.

O secretário-geral da Federação Nacional dos Petroleiros (FNP) e do Sindicato dos Petroleiros do Estado do Rio de Janeiro (Sindipetro-RJ), Emanuel Cancela, critica o fato de o governo Dilma apostar nas privatizações – um tema que, na sua opinião, foi decisivo para conquistar o mandato. “Ela [Dilma] ganhou o debate e eleição [em 2010] justamente se contrapondo às privatizações. E agora faz justamente o contrário do que apregoou?”, critica.

Dentro do Partido dos Trabalhadores, a questão das concessões é encarada de diferentes ângulos, como explica o membro do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores, Valter Pomar. Segundo ele, há desde setores que defendem a necessidade das medidas até aqueles que consideram as concessões uma forma de privatização.

“Eu me alinho com os setores críticos”, afirma Pomar. “Existe espaço para reduzir os ganhos do setor financeiro e, com isso, ampliar a ação direta do Estado, evitando os riscos de uma política de concessões”, complementa.

2014

Para o sociólogo e professor da Universidade Federal de Rondônia Luiz Fernando Novoa Garzon, a postura adotada pelo governo federal é um reflexo da forma como estão estruturadas, hoje, as relações em torno do governo de Dilma Rousseff. Ele lembra que, diferente de Lula, que construía seus pactos por meio de um capital político acumulado ao longo dos anos, a gestão de Dilma tem um caráter mais “burocrático”, costurando suas relações com o capital hegemônico por meio de concessões.

“A estabilidade do bloco de poder demanda uma constante sangria de governabilidade, e o governo precisa fazer concessões constantes”, explica.

As eleições presidenciais de 2014 acentuam o processo. Segundo Garzon, o interesse na reeleição tem feito Dilma levar adiante uma política de proximidade crescente com setores da burguesia brasileira. Prova disso, para ele, foi o encontro realizado no Planalto, em março deste ano, ano entre a presidenta e 28 dos empresários mais influentes do país, que discutiram investimentos da indústria no setor produtivo.

Os empresários, de acordo com Garzon, aproveitam o momento e tentam, ao máximo, obter o maior número de benefícios possível, como é o caso das concessões de setores da infraestrutura, como portos, aeroportos, estradas e ferrovias.

“Para qualquer pressão que o empresariado estabeleça, o governo automaticamente se torna refém dessas pressões em troca de governabilidade imediata para aprovar suas medidas no Congresso e de um eventual apoio para a reeleição”, afirma o professor, que lamenta as consequências.

“A população brasileira e os bens públicos estão pagando o preço de uma reeleição cujos programa e conteúdo não indicam nenhum avanço social e democrático”, opina.

Joceli Andrioli, do Movimento dos Atingidos por Barragens, tem opinião semelhante. Para ele, a privatização de setores estratégicos é uma das principais pautas do capital privado hoje no Brasil. Por isso, o interesse é manter e estreitar as relações com o governo.

“O interesse é usar o Estado o quanto der para garantir o financiamento, a legislação, a defesa do interesse privado e elas serem donas, proprietárias dos bens estratégicos”, diz.

Para o advogado e integrante da Consulta Popular Ricardo Gebrim, o cenário internacional também exerce influência sobre as decisões do Executivo. “Há uma pressão forte da situação econômica internacional e isso tem fragilizado o governo para que atenda aos interesses de grandes grupos capitalistas em relação aos interesses nacionais. O caso do petróleo é isso”, opina.

Emanuel Cancella também destaca as pressões internas e externas enfrentadas pelo governo. Entretanto, o sindicalista lembra que Dilma foi eleita com base popular e parlamentar sólidas, que não justificariam a gama de concessões feitas. Para Cancella, a presidenta precisa estar atenta aos anseios da população.

“A choque ela [Dilma] acredita que o povo brasileiro está dando um cheque em branco a ela, mas isso não é verdade. Toda essa conduta vai ser reavaliada quando chegar a hora das eleições”, assegura.

Para o integrante da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) João Paulo Rodrigues, a política atual de concessões levada a cabo pelo governo “não leva em consideração uma série de lutas que o povo brasileiro fez ao longo dos últimos 20 anos contra a privatização”.

Nesse sentido, segundo ele, torna-se ainda mais importante que os movimentos se mantenham mobilizados em torno da pauta. “Recursos naturais e modelo energético têm que estar sob controle do Estado, não podemos abrir mão disso”, garante.

(Foto: Antonio Cruz / ABr)

Patrícia Benvenuti

Fonte: